23 de julho de 2020 Luciano Marin

“Tatuagem como Memória e Poder”

Por “Maurício Tonetto”.

 

Nas planícies de Yucatã, na América Central, um Maya inicia seu ritual. A conexão com os deuses é traçada na pele, para que a memória acompanhe o guerreiro nesta vida e a alma nas próximas. Em honra a Acat, o Chefe, o bastão do artista percorre lentamente o corpo do jovem Maya. A dor faz parte da libertação. Ser valente é poder. O desafio dura horas. Depois de colorida a pele, os cortes são realizados.

 

Quanto mais atos heroicos e vitórias obtidas, maiores as tatuagens e, consequentemente, mais respeito alcançado. Com as glórias ostentadas no próprio corpo, o Maya segue o curso da vida carregado de símbolos que representam seus ideais, seus êxitos e sua conexão com as energias do universo.

 

Perante a tribo, as tatuagens tinham grande status. Famílias inteiras eram reconhecidas pelas marcas que estampavam. Por outro lado, defronte ao inimigo, eram motivo de penas capitais. Mais do que simplesmente adornar o corpo, a tatuagem Maya simbolizava uma filosofia de vida ligada aos animais, à terra, ao cosmos, ao mistério e à guerra como ritual sagrado. Eles acreditavam também que o corpo humano possui centros energéticos e que tatuar certas partes fazia potencializar a energia em direção aos deuses.

 

Essa lendária civilização deixou como legado, entre uma miríade de belas artes, construções arquitetônicas magníficas e filosofias complexas, a tatuagem como memória e poder. Outras culturas que a sucederam, como a Azteca, aperfeiçoaram os métodos e imprimiram novas texturas, sem jamais abandonar o conceito.

 

Na América, tatuagem nunca foi sinônimo de delito ou escravidão, como era na Grécia antiga, ou punição, como sofreram os cristãos que eram perseguidos após a morte de Jesus Cristo. Nossa tradição está calcada na arte, no místico e no ritual, onde a tatuagem teve um lugar especial de respeito durante séculos.

 

O estigma surge após o desembarque dos europeus. Não apenas a terra deveria ser conquistada; era necessário converter almas e extirpar crenças para sempre. A tatuagem, assim como a língua nativa, era uma prova de que se tratavam de povos bárbaros, ignorantes e alienados da verdadeira fé. Se na Europa tatuar o corpo era sinal de degradação, na América os conquistadores estavam diante de um continente praticamente todo degenerado. O raciocínio era simples e incontestável.

 

Desde então, aos poucos e sistematicamente, a tatuagem foi adquirindo status de marginalização na América Latina. Outrora reflexo de um esplendor indígena e de narrativas mitológicas belíssimas que se perderam no fio da navalha conquistadora, ela foi rebaixada ao submundo da inferioridade colonial, onde permaneceu por séculos aprisionada pela fúria inquisidora e pela falsa moral religiosa.

 

O caminho de volta é árduo e esbarra no preconceito – velado ou explícito. Assumir uma narrativa corporal por meio da tatuagem ainda gera reflexos discriminatórios em diversas camadas da nossa sociedade. Entender os motivos e adquirir uma nova consciência a partir desse processo histórico é fundamental para uma apropriação cultural ampla das nossas origens e raízes.

 

Tatuar o corpo hoje é tolerado, o que denota uma espécie de concessão – um ato de rebeldia “permitido”, mas não aceito verdadeiramente. Não importa se o objetivo é ritualístico ou estético, essa arte é uma manifestação que incomoda, já que o estigma – vejam que paradoxal! –  está gravado em nossa cultura como uma tatuagem.

 

 

Cenas do Filme “Apocalypto” dirigido por Mel Gibson. O Filme conta uma história que se passa na península de Iucatã, antes da colonização espanhola, durante o período da civilização maia.

 

Maurício Tonetto é Jornalista e fotógrafo. Além de um grande amigo é amante da cultura e sociologia da tatuagem.

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